Vamos dar uma hipótese aos pét-nat

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Volta não volta, o mundo do vinho entra em crise. Faz parte das regras. Desta vez, a tempestade é perfeita e, a muitos níveis, original. Em quatro penadas o caso resume-se assim: a) existe uma redução de consumo de vinho a nível mundial no período pós-pandémico (na realidade consumiu-se vinho durante a covid-19 como se o mundo fosse mesmo acabar, pelo que o mais provável é estarmos perante uma correcção de mercado); b) a produção é, hoje, global e o vinho circula livremente em contentores como circulam parafusos ou detergentes; c) os consumidores estão viciados nos descontos dos 60 e 70 por cento e não querem saber muito do conceito de denominação de origem protegida; e, d), crescem como cogumelos personagens que — querendo salvar as nossas almas e os nossos corpos — tudo fazem para dificultar-nos o acesso a bebidas alcoólicas (alguns querem mesmo a abolição do álcool). Vai daí, produzir vinho é tão interessante como vender água engarrafada da Islândia.

Como é que todo este processo se vai corrigir é algo que ninguém sabe, mas, no meio da tal tempestade, não deixa de ser curioso que a categoria cujo consumo continua a crescer a valores generosos é o vinho espumantizado (Champagne, Prosecco, Cava, espumanteespumante & companhia). Variadas razões explicam este fenómeno, mas a realidade é que os consumidores já assumiram que um espumante não é apenas uma bebida de festas, que um espumante é tão bom em Agosto como é em Janeiro e que é um vinho todo-o-terreno à mesa. Vai a todas.

Dentro da categoria dos vinhos espumosos, uma há que, sendo pouco conhecida/consumida, tem vindo também a crescer em termos de oferta: os vinhos espumante naturalmais conhecidos como pet-nate que são, digamos assim, o primeiro modelo daquilo que hoje conhecemos como vinhos efervescentes (Champagne ou espumantes).

Claro que, em termos de resultado final e sensorial, um Champagne face a um pet-nat é a diferença entre o dia e a noite. Em ambos os casos temos um vinho final com gás natural que se desenvolve na garrafa durante a fermentação dos vinhos ou mostos, mas enquanto o método champanhês se aprimorou ao longo dos séculos, traduzindo-se o processo num vinho com grande refinamento a todos os níveis (aromas, limpidez, sabores, longevidade e até elegância estética na apresentação das garrafas), o pet-nat é um vinho bastante mais primário e simples. Se no caso do Champagne a segunda fermentação é feita a partir de vinho com açúcar e leveduras (o licor de tiragem), com o pet-nat a fermentação é única e a partir de vinho não totalmente fermentado (logo, com açúcar). Coloca-se o mosto, fecha-se a garrafa com a carica, esperam-se alguns meses e nada mais. Não há qualquer processo de vomitar ou filtração, razão pela qual estes vinhos chegam-nos sempre turvos, embora em graus diferentes.

Isso é carácter ancestral e primário dos pet-nat faz com que esta categoria seja muito apreciada pelos adeptos dos vinhos naturais porque não há adição de anidrido de enxofre (vulgo SO2) — a criptonita destes consumidores.

E se há muitos vinhos pet-nat que não primam pela elegância e refinamento aromático, outros há que se apresentam perfumados, desafiantes, refrescantes, gulosos e com níveis de álcool baixos, mesmo a calhar nos tempos que correm. Esta questão do baixo álcool é, de resto, uma virtude dos pet-nat.

Posto isto, vamos a sugestões, começando pelo último vinho que nos calhou em prova: o Lagoalva Pét-Nat 2023. Feito de Arinto (80 por cento) e Fernão Pires (20 por cento), é um espumante que encanta pelo perfil aromático (notas cítricas e florais), pela limpidez de sabores e pela leveza, o que até pode ser um perigo porque quando damos por ela a garrafa já vai a meio. Custa 10 euros.

Também lançado por estes dias foi Vale da Mata Pét-Nat 2023 (universo Rocim), que se apresenta em tons rosados pelo facto de juntar as castas Tinta Roriz, Vital e Arinto. Está delicado de aromas, com uma mistura de frutos vermelhos frescos e mineralidade. Na boca, refrescante e com bolha finíssima. Custa cerca de 11 euros.

Por fim, o pet-nat Pequenos Rebentos Loureiro 2022, de Márcio Lopes. Não é uma novidade, mas desde que o provámos numa mercearia lisboeta que temos repetido a compra. Pelo facto de ter mais um ano, é um vinho com mais estrutura e sabores e aromas mais complexos, que já exigem algum petisco na mão esquerda. Custa 19 euros.

Cada um usará estes vinhos como entender. Para nós, dão jeito quando recebemos amigos mal passam a porta de entrada (em particular aqueles preconceituosos que acham que pet-nat não é bem um vinho), quando estamos a ler um jornal ou enquanto esperamos que um estufado se apure antes de seguir para a mesa. Até a malta da cerveja se rende.

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